Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

LÁGRIMAS LADEIRA ABAIXO

ZERO HORA 28 de janeiro de 2014 | N° 17687

HELOISA ARUTH STURM | SANTA MARIA


Atos lembram as 242 vítimas da tragédia


Uma homenagem às vítimas da Kiss, no campus da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), marcou o último dia de atividades do 1º Congresso Internacional Novos Caminhos – A vida em transformação. A cerimônia ocorreu no templo ecumênico da instituição e foi acompanhada por cerca de 200 pessoas. Para simbolizar a vida, uma árvore frutífera foi plantada no local.

O presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Adherbal Alves Ferreira, que plantou a bergamoteira na companhia de outros pais, falou sobre o significado daquele ato.

– Este é um momento de introspecção da alma. Estamos reunidos para lembrar dos nossos filhos, nossos anjos, que nos deixaram aqui para que possamos andar novos caminhos. Que esta árvore cresça e se fortaleça para ajudar outras vidas e prevenir outras mortes.

Miguel, Augusto, Nathiele, Laureane, Walter, Jacob, Danrlei, Ana Paula, Daniel, Roger, Susi, Leonardo, Andriese, Daniela, Matheus, Vinícius, Nathi, Jennefer: vítimas da tragédia, foram lembrados e homenageados em cartazes e retratos nas camisetas de pais, irmãos e familiares.

O evento contou com a participação da cantora lírica Luciana Kiefer, professora de canto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acompanhada pelo tecladista Charles Medina, e da banda de música da 6ª Brigada de Infantaria Blindada, regida pelo tenente-regente Jorge Berghahn.

– O Exército sempre esteve presente desde o primeiro momento da tragédia, trabalhando em silêncio e demonstrando solidariedade. Fazemos parte disso, perdemos oito militares no incêndio. Não poderíamos estar de fora de um ato como esse – disse o tenente-coronel Ribeiro, da 3ª Divisão do Exército.

Em momento de emoção, nomes de mortos foram anunciados sob o rufar de tambores

O reitor da UFSM, Paulo Burmann, estava presente ao evento e lembrou a perda de 111 alunos da instituição no incêndio:

– Foi um evento desastroso que mantém tanta dor circulando ainda nos espaços da instituição. A universidade tem de exercer um protagonismo no processo para servir de referência em termos de segurança, porque a origem desse drama foi o descumprimento de normas de segurança que levaram à perda de tantos valores da nossa sociedade que estes estudantes levavam consigo.

No fim da cerimônia, foram lançados 242 balões representando o número de mortes na Kiss.

No começo da noite, cerca de mil pessoas participaram do último ato de homenagens às vítimas da boate Kiss no dia que marcou um ano da tragédia. Durante a tarde, diversas apresentações de músicos nativistas ocorreram na Praça Saldanha Marinho, no centro de Santa Maria.

O momento de maior emoção foi quando os nomes das 242 vítimas foram anunciados ao som de tambores. Voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV) e representantes de diferentes instituições religiosas estiveram no local para dar apoio emocional aos familiares. O evento se encerrou com um ato ecumênico.

ADHERBAL FERREIRA, Presidente da AVTSM: ‘‘Este é um momento de introspecção da alma. Estamos reunidos para lembrar dos nossos filhos, nossos anjos, que nos deixaram aqui para que possamos andar novos caminhos. Que esta árvore cresça e se fortaleça para ajudar outras vidas e prevenir outras mortes."


LILIAN XISTO, Feirante, sobre as pinturas feitas no asfalto simbolizando os 242 mortos: ‘‘Eu não consigo enxergar pintura. Eu enxergo a Luana, o João, a Jeniffer... Eu vejo todos eles."



SERVIÇO INSUFICIENTE


ZERO HORA 28 de janeiro de 2014 | N° 17687


EDITORIAIS



A existência de 189 mil planos de prevenção de incêndio à espera de alvará no Estado evidencia a incapacidade do Corpo de Bombeiros, com o atual quadro, de dar conta da demanda no prazo que os proprietários desejam. O comandante da corporação, em entrevista a este jornal, admite a sobrecarga e diz que está tentando atenuar o problema com a formação de forças-tarefas emergenciais. Traduzindo: os bombeiros fazem o que podem, mas não estão conseguindo dar conta do recado, especialmente no que se refere à prevenção, que passou a ser o principal foco do trabalho.

Eis aí um desafio inadiável para o governo do Estado: aperfeiçoar o serviço de vistoria e liberação de documentos para o funcionamento com segurança das casas comerciais, clubes e salões paroquiais que recebem grande afluência de pessoas. A segurança tem que vir em primeiro lugar, mas não há sentido em simplesmente paralisar o funcionamento dos estabelecimentos por falta de estrutura fiscalizadora.

Há alternativas. Como sugere o presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Estado, Luiz Alcides Capoani, o governo poderia contratar técnicos, mais especificamente engenheiros e arquitetos, para auxiliar na análise e na implantação dos planos de prevenção. O aumento do rigor por parte do poder público para conceder alvarás, mais do que justificado depois da tragédia da boate Kiss, tem que ser acompanhado de condições efetivas de operação.

Quando ocorre um sinistro, ninguém quer saber se a fiscalização foi mal feita por falta de servidores. No caso de Santa Maria, por exemplo, os bombeiros acabaram sendo responsabilizados, tanto por falhas na prevenção quanto pelo atendimento prestado na hora do incêndio – ainda que, em ambos os casos, estivessem em número reduzido e com equipamento precário.

Precisam, portanto, de reforço e de ajuda.


MUNICÍPIOS COM UNIDADES DE BOMBEIROS NO RS (2010)

SEM JUSTIÇA NÃO HÁ PAZ


ZERO HORA 28 de janeiro de 2014 | N° 17687


PÁGINA 10 | ROSANE DE OLIVEIRA



A frase acima paira sobre Santa Maria. Está escrita no tapume em frente aos escombros da boate Kiss, em cartazes usados nas manifestações e na boca de pais, mães e amigos das vítimas. Foi repetida ontem pelo presidente da associação dos familiares das vítimas e sobreviventes da tragédia, Adherbal Alves Ferreira, pai de Jennefer, homem que fez da busca por justiça uma razão para viver.

Adherbal, assim como quase todos os pais e mães das vítimas, convive com a sensação de que os responsáveis pelo crime ficarão impunes. Eles não se conformam com o fato de, um ano depois, ninguém estar preso ou ter sido julgado. Temem que as manobras dos advogados possam encurtar a já escassa lista de réus. Criticam o Ministério Público por ter livrado pessoas que, na visão da polícia, contribuíram para a tragédia por ação ou omissão.

Ontem, os familiares das vítimas ganharam outra preocupação. Em caderno publicado pelo Diário de Santa Maria, há uma entrevista com o juiz Ulysses Louzada, responsável pelo processo criminal. Na primeira resposta, ele diz:

– Fazer justiça? Não tenho essa pretensão.

A resposta é mais ampla, mas a frase faz pensar. Se um juiz não tem pretensão de fazer justiça, o que esperar? Ele pode ter sido modesto, já que emenda “não tenho pretensão de achar que sou dono do mundo”, mas a frase espanta quem acredita que essa é a missão do juiz.

Diga-se em benefício de Louzada que ele é dedicado. Saiu de Santa Maria e foi ao Interior ouvir testemunhas. O gesto lhe valeu a contestação de um dos advogados, que ameaça pedir a nulidade do trabalho, apesar de ter sido feito com aval do Tribunal de Justiça.

Outro motivo de preocupação para as famílias apareceu no programa Polêmica de ontem, quando o advogado de Kiko Spohr, Jader Marques, declarou que seu cliente era o único dono da Kiss. A afirmação tenta isentar de culpa o outro dono, Mauro Hoffmann, que, nas palavras de Jader, era apenas o “capitalista” e não tinha qualquer envolvimento com a gestão. Se Kiko está assumindo a responsabilidade sozinho, Hoffmann pode acabar inocentado, já que, na versão do advogado, sequer assinou o contrato porque identificou irregularidades, e não pagou tudo o que devia.



242 MOTIVOS PARA COBRAR

ZERO HORA 28 de janeiro de 2014 | N° 17687

LETÍCIA DUARTE | SANTA MARIA


LÁGRIMAS LADEIRA ABAIXO

Santa Maria revive a madrugada sem fim. No dia em que a maior tragédia da história do Rio Grande do Sul completou um ano, pais, amigos, namorados e familiares se reuniram para cobrar justiça



Natural de um país marcado pela guerra, o escritor moçambicano Mia Couto resumiu a dor da ausência em seis palavras: “morto amado nunca para de morrer”. A frase aparece no livro Um Rio chamado tempo, Uma casa chamada terra, lançado em 2003.

Em Santa Maria, um ano depois da tragédia na Kiss, é como se as 242 vítimas continuassem a morrer diante da boate.

A dor não cumpre calendário, mas no dia em que o incêndio completou seu primeiro ano, neste 27 de janeiro, o ar se tornou mais denso naquela ladeira da Rua dos Andradas. Pais, amigos e sobreviventes esperaram o amanhecer em vigília diante da Kiss para cobrar Justiça. Com baldes de tinta branca nas mãos, jovens ligados ao movimento Santa Maria Do Luto à Luta pintaram 242 silhuetas no asfalto. Chegaram minutos antes da virada para o dia 27 – o mesmo horário em que, um ano atrás, os frequentadores formavam fila para entrar na Kiss. Em silêncio, dividiram-se em grupos para encharcar de realidade o chão onde tombaram as vítimas.

Num megafone, contavam em voz alta o luto convertido em estatística. Um! Dois! Três! Quatro! Cinco! Seis! Sete! Oito!.. Quase cinco minutos até o 242. Uma contagem que se repetiu ao longo do dia. Queriam mostrar que seus filhos não são números. Que suas mortes não podem ser em vão.

– Acorda Santa Mariiiiiaaaa! – bradavam, enquanto sirenes ecoavam pelo ar, em vários momentos durante a madrugada.

Com um nariz pintado de vermelho, como palhaço, a feirante Lilian Xisto, 33 anos, contornava atordoada os corpos recém-desenhados no chão, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

– Eu não consigo enxergar pintura. Eu enxergo a Luana, o João, a Jeniffer... Eu vejo todos eles.

Em 27 de janeiro do ano passado, Lilian passara o dia no ginásio onde estavam enfileirados os corpos. Havia ido até lá procurar pelo marido de uma amiga, grávida de sete meses. Encontrou João e mais 17 pessoas próximas. Não conseguiu ir embora.

A dor coletiva caminha pelas ruas, em uma procissão de barulho e revolta

Voluntariamente, Lilian se dispôs a limpar e recompor cadáveres. Não queria que os pais recebessem seus filhos naquele estado. Abalada, mudou-se depois com a família para Santa Catarina. Queria esquecer, mas Santa Maria foi junto. Na placa do carro, nas memórias, nas perguntas insistentes dos vizinhos. Decidiu voltar.

– Vim pra luta. Pra lutar por Justiça. Estão nos fazendo de palhaços, mas não somos – explicou, com a voz suave e o sorriso doce contrastando com as palavras duras.

Quando o dia amanheceu, a dor coletiva entrou em procissão pelas ruas de Santa Maria. Com galões de plástico e pedaços de madeira transformados em tambores, manifestantes ritmavam a indignação que consome as famílias. Caminharam até o Ministério Público, onde encontraram portões fechados. Deixaram balões brancos. Pelo caminho, sensibilizaram quem tentava seguir a vida, como em um dia qualquer. Funcionários do comércio cruzaram os braços por alguns instantes. Um guarda municipal organizava o trânsito com uma mão e, com a outra, segurava as lágrimas. Mas também cruzaram com motoristas impacientes e lojas abertas – sinal de um lado da cidade que quer seguir adiante. Esses reclamam que Santa Maria já viveu luto por tempo demais. Que não pode ficar paralisada pela dor.

– E se fosse seu filho? – questionavam em resposta os manifestantes, em coro.

Hoje já é dia 28, e a cidade segue dividida. Cindida entre o trauma e a necessidade de recomeçar. No Hospital de Caridade, que no ano passado acolheu centenas de feridos, nenhuma cesárea foi programada para 27 de janeiro. Ninguém queria que seu filho carregasse a data da tragédia na certidão de nascimento.

Mas, em meio ao luto coletivo, sinais de vida também se multiplicam. No mesmo lugar onde centenas de pais aguardavam o vaivém das ambulâncias com pacientes sujos de fuligem no ano passado, familiares de dois sobreviventes da Kiss estavam ansiosos ontem. Esperavam pela chegada do vigilante Jairo Cesar Rodrigues, 39 anos, que vinha correndo para cumprir uma promessa. Há um ano, quando o sobrinho Juliano Almeida da Silva, 23 anos, ficou entre a vida e a morte, o vigilante prometeu que correria um quilômetro para cada dia que ele ficasse internado. Para agradecer, percorreu na manhã de ontem 39 quilômetros desde São Pedro do Sul até a Kiss.

Um ano depois, a madrugada de 27 de janeiro ainda não terminou. Se o tempo não é capaz de curar a dor, precisa ao menos servir para que aprendamos suas lições. E a primeira é que a ausência dói mais quando vem acompanhada de impunidade.


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

APLICATIVO PERMITE ACESSO A INFORMAÇÕES DE SEGURANÇA CONTRA INCÊNDIOS

G1 27/01/2014 12h39

Tecnologia vira aliada de jovens que frequentam boates na Serra do RS. Em Caxias do Sul, aplicativo permite acesso a informações de segurança. Programa foi desenvolvido por empresa e pelo Corpo de Bombeiros.

Do G1 RS



Em Caxias do Sul, na serra do Rio Grande do Sul, a tecnologia virou aliada de jovens que frequentam casas noturnas e buscam maior segurança. Um programa desenvolvido por uma empresa da cidade e pelo Corpo de Bombeiros, que ainda não é obrigatório, permite aos usuários dos estabelecimentos acesso às informações de proteção contra incêndio. Ainda é possível compartilhar os dados através de um aplicativo no celular.

O programa ainda é novidade. Foi lançado em dezembro do ano passado e começou a funcionar neste fim de semana. Validade de alvarás, itens de segurança como extintores, saídas de emergência, tudo o que o local tem em termos de proteção vai aparecer na tela do celular.


Cristiano Felipetti foi quem desenvolveu o programa. Após o incêndio na boate Kiss, o objetivo dele era criar um sistema que pudesse ajudar na fiscalização. "A ideia era atender a situação de chegar no local e conferir, fiscalizar se esse local está em dia com a prevenção de incêndio e isso pode ser usado em diversos estabelecimentos, em escolas, estádios de futebol", explicou.

A proposta foi logo aceita pelo Corpo de Bombeiros, que custeou o projeto. "O usuário pode se tornar um fiscal das atividades dos bombeiros, tanto da situação de segurança. A nova legislação, de dezembro de 2013, exige que os estabelecimentos tenham dados à disposição da população", comentou o capitão Maurício Ferro.

Caso o usuário desconfie do estabelecimento ou não encontre os itens obrigatórios de prevenção e segurança, é possível fazer uma denúncia aos bombeiros por meio do aplicativo.

Para ter acesso ás informações das casas noturnas, é preciso escolher um dos programas de leitura de QR Code e instalar no celular. Com o aplicativo instalado, é só abrir o programa que a câmera do celular é acionada. Depois, a câmera deve ser posicionada em frente ao selo com o código, que será lido.

NORMAS EXISTEM, MAS NÃO HÁ LEIS QUE DETERMINEM SEU CUMPRIMENTO


Boate Kiss: Projetos no Congresso propõem que todos sigam parâmetros da ABNT

ANDRÉ DE SOUZA
O GLOBO
Publicado:26/01/14 - 8h00


BRASÍLIA — Apenas existirem leis não basta. Elas precisam ser aplicadas. O presidente do Conselho Nacional dos Corpos de Bombeiros Militares do Brasil, coronel Lioberto de Souza, lembra que a grande maioria dos municípios não tem Corpo de Bombeiros para fazer valer as normas locais de segurança. Ele prega ajuda maior do governo federal aos municípios, citando especificamente a Amazônia.

— Na região amazônica, 90% dos municípios são subsidiados pelo governo federal, sequer têm condição de contratar professores. Como vão contratar bombeiros municipais? Os estados pagam o salário dos bombeiros. Queremos que o governo federal absorva um pouco esse custo, complemente esse orçamento, capacite outros bombeiros, ajude a formá-los — diz o coronel, que é comandante dos Bombeiros de Rondônia.

Carlos Mathias de Souza, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), faz o mesmo alerta. Segundo ele, situações traumáticas geram uma busca intensa por soluções legislativas. Mas é importante que sociedade e o Ministério Público fiscalizem, e que a Justiça não seja lenta.

— A legislação é importante para disciplinar, para que você tenha uma norma de conduta, mas ela tem que ser eficaz, não pode ser pirotécnica, um obaoba. Se tiver que aumentar a multa, tem que aumentar. Mas não é assim que o sujeito vai resolver o problema — diz ele.

Eugenio Guilherme, diretor técnico da ABNT, também aponta para o problema.

— Se em Santa Maria tivessem seguido as normas da ABNT, não teria acontecido aquilo. Nós já temos uma norma que estabelece como é a saída de emergência de uma casa de espetáculos, quantos sprinklers por metro quadrado é preciso ter, como se coloca mangueira de incêndio, extintor, que tipo de extintor deve ser usado. E as normas estabelecem que o isolamento não pode ser feito com material inflamável.

No Brasil, os avanços na prevenção geralmente ocorrem depois de desastres. São Paulo, cuja legislação é sempre citada como exemplo, só avançou depois de grandes incêndios nas décadas de 1970 e 1980.

Maioria dos municípios não tem Corpo de Bombeiros

Apenas existirem leis não basta. Elas precisam ser aplicadas. O presidente do Conselho Nacional dos Corpos de Bombeiros Militares do Brasil, coronel Lioberto de Souza, lembra que a grande maioria dos municípios não tem Corpo de Bombeiros para fazer valer as normas locais de segurança. Ele prega ajuda maior do governo federal aos municípios, citando especificamente a Amazônia.

— Na região amazônica, 90% dos municípios são subsidiados pelo governo federal, sequer têm condição de contratar professores. Como vão contratar bombeiros municipais? Os estados pagam o salário dos bombeiros. Queremos que o governo federal absorva um pouco esse custo, complemente esse orçamento, capacite outros bombeiros, ajude a formá-los — diz o coronel, que é comandante dos Bombeiros de Rondônia.

Carlos Mathias de Souza, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), faz o mesmo alerta. Segundo ele, situações traumáticas geram uma busca intensa por soluções legislativas. Mas é importante que sociedade e o Ministério Público fiscalizem, e que a Justiça não seja lenta.

— A legislação é importante para disciplinar, para que você tenha uma norma de conduta, mas ela tem que ser eficaz, não pode ser pirotécnica, um obaoba. Se tiver que aumentar a multa, tem que aumentar. Mas não é assim que o sujeito vai resolver o problema — diz ele.

Eugenio Guilherme, diretor técnico da ABNT, também aponta para o problema.

— Se em Santa Maria tivessem seguido as normas da ABNT, não teria acontecido aquilo. Nós já temos uma norma que estabelece como é a saída de emergência de uma casa de espetáculos, quantos sprinklers por metro quadrado é preciso ter, como se coloca mangueira de incêndio, extintor, que tipo de extintor deve ser usado. E as normas estabelecem que o isolamento não pode ser feito com material inflamável.

No Brasil, os avanços na prevenção geralmente ocorrem depois de desastres. São Paulo, cuja legislação é sempre citada como exemplo, só avançou depois de grandes incêndios nas décadas de 1970 e 1980.


Boate Kiss: nas capitais, estrutura de fiscalização precária. Em Cuiabá, prefeitura trabalha com 1/4 do ideal; governo de SP reconhece necessidade ‘urgente’ de contratação

O GLOBO *
Publicado:26/01/14 - 8h00

Depois de boate não cumprir a ordem de interdição, prefeitura constrói muro Secretaria Municipal de Comunicação (Semcom)


Manaus, Recife e SÃO PAULO — A tragédia da boate Kiss em 2013 parece não ter servido de lição para que prefeituras melhorassem as estruturas de fiscalização de boates e casas de show. Capitais como São Paulo, Cuiabá e Curitiba não viabilizaram a contratação de fiscais, apesar do diagnóstico, à época, de que uma das fragilidades no serviço era o déficit de pessoal. O principal efeito tem sido uma redução gradual do efetivo pela falta de reposição daqueles que se aposentam ou se desligam da função.

As prefeituras não informam o número de cargos desocupados em 2013. Mas, em São Paulo, um acompanhamento do Sindicato dos Agentes Vistores do município (Savim) indica que 24 fiscais deixaram a carreira desde janeiro de 2013 — 21 se aposentaram, um morreu, um pediu demissão e outro foi exonerado. Isso representa 4% dos cerca de 550 agentes que fiscalizam de tudo (de obras irregulares a casas noturnas). Quando a carreira foi criada nos anos 1980, a previsão era um quadro de 1.200.

— Após o acidente teve toda aquela euforia. Só que isso durou dois meses. Não vimos mudança no modo de fiscalizar nem na estrutura. O último concurso público foi em 2002 — diz a presidente do Savim, Claret Alves Fortunato.

O governo municipal reconhece a “necessidade urgente de contratação”, mas não diz quando pretende fazê-la.

Em Curitiba, a promessa de dobrar a equipe, de 35 fiscais, pouco avançou. A proposta agora é fazer o reforço este ano. Desde 2010, não há contratação.

— Nós precisamos muito reforçar a fiscalização porque muitos vão se aposentando e o contingente vai diminuindo — afirma o secretário de Urbanismo, Reginaldo Cordeiro.

A prefeitura de Cuiabá trabalha hoje com uma equipe de fiscais que é 1/4 da ideal. A informação é do titular da pasta de Meio Ambiente, Antônio Máximo, que calcula que, daqui cinco anos, se não houver novas contratações, esse número estará 30% menor:

— Hoje, são mais ou menos 250 fiscais. O ideal seriam mil. Mas não dá pra dizer quando vamos contratar. Estamos atrás de investimentos em tecnologia para compensar.

Em São Paulo, tentativas de modernizar a fiscalização acabaram mal. A 1ª, em 2011, para locação de tabletes, foi cancelada por suspeita de superfaturamento. Em 2012, fiscais os receberam, mas foram recolhidos por problemas no funcionamento.

Garantir que os estabelecimentos funcionem dentro das normas de segurança requer planejamento. Coordenador de fiscalização preventiva do Crea-MT, Reynaldo de Magalhães conta que muitos empresários se assustaram com a tragédia de Santa Maria. Mas, com o tempo, a tendência, se não houver uma fiscalização rotineira, é de relaxamento.

Em Cuiabá, onde logo após a tragédia houve uma varredura em todas as boates e casas de show, uma nova ofensiva no fim de 2013 confirma a preocupação do engenheiro. Dos 20 locais vistoriados até agora, um estava totalmente regular.

Em Recife, 4 casas fechadas

Em Recife, onde existem 180 casas de shows e infantis, boates e bares, menos da metade passou por fiscalização de fevereiro de 2013 até hoje, mesmo com o município tendo criado esquema para realizar vistorias semanais. Ao todo, 71 casas foram notificadas, 17 interditadas e quatro fechadas. Na tentativa de otimizar o trabalho dos 60 fiscais de controle urbano, que se dividem nas seis regiões político-administrativas e cobrem casas formalizadas e clandestinas, a secretária-executiva de Controle Urbano, Cândida Bonfim, explica que são organizadas reuniões semanais entre prefeitura, Corpo de Bombeiros e Polícia Militar para definir quais serão vistoriadas primeiro.

Nas reuniões, três pontos são levados em consideração: notificações sobre público excedente, registro de crimes pela PM e denúncias feitas pela população.

Outra medida foi a criação de um decreto, em julho de 2013, que determina que donos de estabelecimentos devem assinar um termo de responsabilidade, afirmando que cumprem todas as normas de segurança. Até semana passada, 96 assinaram.

Segundo o secretário de Mobilidade e Controle Urbano, João Braga, existe ainda proposta de aumentar o valor da multa cobrada aos que estiverem em desacordo com as normas de segurança. Atualmente, fica em torno de R$ 6 mil.

— Queremos fixar uma multa de 20% em cima do valor do estabelecimento — diz Braga.

Em Manaus, a prefeitura adotou medidas para tornar mais rígida a concessão de alvarás e licenças ambientais. E houve aumento no número de fiscalizações. Em quatro operações da prefeitura, dos 128 estabelecimentos com indícios de irregularidades, 40 foram fiscalizados.

Em dezembro de 2013, a Câmara Municipal aprovou lei que proíbe a utilização de fogos em casas noturnas, bares e restaurantes. Os estabelecimentos que descumprirem a norma podem ter a licença de funcionamento suspensa e, em caso de reincidência, até perder o alvará.

Desde a tragédia de Santa Maria, foram interditadas em Manaus 52 casas noturnas. O caso mais emblemático foi registrado na boate Rêmulo’s Club. Em janeiro de 2013, a boate foi interditada por não possuir licença ambiental. Um dia após a interdição, reabriu as portas. No dia 4 de dezembro, a boate teve a entrada fechada por um muro de alvenaria, construído pela prefeitura, que descobriu que o local também funcionava como motel. Dia depois, a boate conseguiu uma liminar para que o muro fosse derrubado e voltou a funcionar. (* Por Silvia Amorim, Camila Carvalho e Marcela Balbino)

INCÊNDIO DA KISS PODERÁ TER MAIS INDICIADOS

CORREIO DO POVO 27/01/2013
Danton Júnior / Correio do Povo

Polícia prepara dois novos inquéritos sobre o caso



Polícia prepara dois novos inquéritos sobre o caso
Crédito: Tarsila Pereira


Em um dos painéis mais aguardados do congresso Novos Caminhos, o subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Marcelo Dornelles, disse que, caso haja novos elementos, outras pessoas poderão ser responsabilizadas pelo incêndio que matou 242 pessoas. Familiares das vítimas criticam a posição do Ministério Público, que ofereceu oito denúncias criminais, oito militares e quatro por improbidade administrativa. A Polícia Civil prepara dois novos inquéritos sobre o caso.

"Se vier o que a polícia tem falado, de dois novos inquéritos, vamos analisar tudo de novo. E se encontrarmos algo contra quem quer que seja, vamos agir. Se não encontrarmos, é o que está hoje", observou. De acordo com ele, o MP não terá dificuldades, caso necessário, em voltar atrás, inclusive na posição do órgão sobre a responsabilização do prefeito Cezar Schirmer.

O delegado regional da Polícia Civil em Santa Maria, Marcelo Arigony, foi aplaudido de pé pelo público presente ao auditório da Unifra. Ele disse que, eventualmente, novas pessoas poderão ser responsabilizadas nos inquéritos em andamento. "Já está delineado que há algumas irregularidades, mas seria temerário da minha parte querer apontar quais são os apontamentos", observou.





Vigília lembra vítimas da boate Kiss

Tragédia que vitimou 242 jovens em Santa Maria completa um ano nesta segunda-feira




Tragédia que vitimou 242 jovens em Santa Maria completa um ano nesta segunda-feira
Crédito: Tarsila Pereira


O movimento em frente à boate Kiss, na Rua dos Andradas, em Santa Maria, aumentou no início da madrugada desta segunda-feira. O clima é de silêncio e o fluxo de pessoas deve crescer até a hora que o incêndio aconteceu, por volta das 2h30min. A intenção é permanecer no local até a manhã. Às 8h está programada uma caminhada até a praça Saldanha Marinho.

No horário em que o fogo começou, serão colocadas 242 velas – 115 rosas, representando as meninas, e 127 brancas, representando os meninos. Pai de uma das vítimas, Ildo Toniolo, que até hoje acorda no horário da tragédia, organizou a homenagem. “Cada vela vai representar a chama da vida de cada um. Não é um rito religioso”, explicou.

Na noite desse domingo, as silhuetas de 242 pessoas foram pintadas no asfalto em frente à fachada da boate. Uma faixa contra a impunidade foi pendurada no prédio pedindo a punição dos culpados pela tragédia – o número de indiciados podem aumentar, conforme a Polícia Civil.

A quadra foi bloqueada e deve ficar assim até as 8h. Voluntários da Cruz Vermelha fazem o atendimento psicossocial aos familiares e várias pessoas usam camisetas em homenagem às vítimas. No início da madrugada, muitas flores eram colocadas frente à Kiss.

*Com informações do repórter Danton Júnior

As silhuetas de 242 pessoas foram pintadas no asfalto em frente à fachada da boate | Foto: Tarsila Pereira

Fonte: Correio do Povo

ANTES DE TUDO, A PREVENÇÃO

ZERO HORA 27 de janeiro de 2014 | N° 17686

HELOISA ARUTH STURM | SANTA MARIA

KISS UM ANO



Congresso que reuniu especialistas em segurança em Santa Maria terminou com discussão entre familiares de vítimas e representante do MP em razão do arquivamento de processo contra servidores públicos

Terminou em bate-boca o segundo dia do congresso organizado em Santa Maria para lembrar as 242 mortes no incêndio da boate Kiss. Na noite de ontem, um grupo de familiares de vítimas discutiu com o subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do MP, Marcelo Dornelles, ao questionar o motivo do arquivamento do processo de improbidade administrativa contra servidores da prefeitura. Alguns pais mais exaltados interromperam a fala dos palestrantes para se manifestar e pedir por justiça.

No último painel do dia, que debateu a atuação da Polícia Civil, de advogados e procuradores no caso, Dornelles afirmou que a decisão foi tomada com base nas informações de que dispunham na época. O evento contou com a presença do delegado Marcelo Arigony – muito aplaudido pelo auditório por sua atuação à frente das investigações do caso –, do defensor público Andrei Melo e de três advogados da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.

O primeiro congresso realizado em Santa Maria para lembrar as 242 vítimas do incêndio na boate Kiss definiu o foco que deverá ser seguido para evitar que tragédias como essa se repitam: a prevenção. Nos dois primeiros dias do I Congresso Internacional Novos Caminhos – A vida em transformação, palestrantes se dedicaram a apresentar propostas para a criação de grupos de pesquisa, conselhos e regulamentação de novas leis, de forma a colocar em prática as lições aprendidas com o incidente. O especialista em segurança J. Pedro Corrêa diz que, no país, ainda falta desenvolver uma cultura de segurança, prática já adotada em locais como Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos e Japão. Para isso, seria necessário criar conselhos municipais de segurança, com legislação específica sobre o assunto, e promover a inserção do tema nas salas de aula.

A participação de universidades é essencial, avalia Corrêa, para elaboração de um projeto que minimize a exposição a situações de risco e para ajudar num futuro mapeamento das cidades com objetivo de identificar e corrigir locais propícios a acidentes:

– É um esforço complicado, é do tamanho da dor de Santa Maria, por isso, indispensável. A ideia é que, daqui a cinco, 10 anos, Santa Maria não seja lembrada como a cidade do incêndio da boate Kiss, mas sim como a cidade que se reergueu das cinzas e se tornou mais segura para a comunidade.

Paulo Chaves de Araújo, coronel da reserva do Corpo de Bombeiros de São Paulo e idealizador do Brasil em Chamas, propôs a criação de um observatório para coletar e disponibilizar as informações sobre a segurança contra incêndio no país, identificando leis e regulamentações conflitantes, além de criar base de dados e indicadores capazes de subsidiar tomadas de decisões e políticas públicas. A programação do evento continua hoje. Um ato em homenagem às vítimas está marcado para ocorrer às 9h, no campus da UFSM.



Vigília pelas 242 vítimas

O branco uniu Santa Maria nas homenagens às vítimas da Kiss. A cor esteve presente em balões, flores, fitas, banners, roupas, vitrines, templos religiosos e casas – mas não abrandou os pedidos por justiça que deram o tom da maioria dos eventos programados por associações de familiares e sobreviventes.

A vigília que estava programada para atravessar a madrugada começou às 23h de ontem em dois pontos: na frente da boate e na barraca dos familiares montada na Praça Saldanha Marinho. A ideia dos pais era fazer a concentração nas proximidades da barraca e caminhar até a Rua dos Andradas.

No final da noite de ontem, cerca de 50 pessoas estavam na vigília. Por volta das 23h30min, um grupo começou a pintura de 242 silhuetas humanas em frente à Kiss (foto acima), em lembrança às vítimas do incêndio de 27 de janeiro de 2013.


ZERO HORA 27 de janeiro de 2014 | N° 17686

EDITORIAIS

O momento de esclarecer



Passado o primeiro ano da tragédia da boate Kiss, o doloroso episódio ainda carece de definições, especialmente no que se refere às responsabilidades. A dor das famílias, as manifestações de solidariedade e todos os movimentos no sentido de reparar o que aconteceu em Santa Maria somente terão algum sentido se pontos ainda obscuros forem finalmente analisados e julgados com bom senso. É inútil, para que se compreenda o que aconteceu e quais são as responsabilidades de cada envolvido, a insistência na explicitação de conflitos entre quem investigou, quem acusou e quem vai julgar. O que importa é que as famílias sejam pelo menos confortadas pela certeza de que todos fizeram o melhor para que o episódio não seja esquecido, para que sejam criados mecanismos preventivos eficientes e para que se afaste o risco de impunidade.

É nesse contexto que, entre outros aspectos, merece observação atenta das autoridades o resultado de sindicância conduzida por um grupo de policiais de Santa Maria. A tarefa dessa equipe foi, como bem define reportagem publicada hoje por Zero Hora, a de remontar um quebra-cabeça de exigências, documentos e formalidades que, desrespeitadas, contribuíram para o que ocorreu. Está reafirmado, agora de forma categórica, que a boate nunca cumpriu totalmente o que determinam as leis. O estabelecimento era o exemplo acabado de situa- ções que, infelizmente, repetem-se em todo o país, com a diferença de que nem sempre se traduzem em sinistros fatais.

Essa é uma das principais lições que as investigações deixam aos que perseguem a verdade, para que nenhuma dúvida, em torno de questões essenciais, se mantenha depois das investigações e do veredicto da Justiça. A reportagem mostra como a negligência contagiou desde os donos da boate até os responsáveis pelas instituições que, em algum momento, poderiam ter impedido que a casa noturna continuasse funcionando. Chegou a hora do esclarecimento integral, a partir dessa e de outras conclusões, como exigência de todos, e não só dos familiares dos jovens mortos e feridos.

TODAS AS DENÚNCIAS SÃO CONFERIDAS


ZERO HORA 27 de janeiro de 2014 | N° 17686

KISS UM ANO

“Todas as denúncias são conferidas”

ENTREVISTA

EVILTOM PEREIRA DIAZ, comandante do Corpo de Bombeiros



Comandante do Corpo de Bombeiros desde 17 de dezembro, o coronel Eviltom Pereira Diaz,49 anos, admite que a demanda por prevenção cresce sem que o efetivo acompanhe. Leia trechos da entrevista que o oficial concedeu a ZH

Zero Hora – A fila para aprovação de PPCIs e emissão de alvará dos bombeiros aumenta a cada dia, mas o efetivo da corporação não acompanha esse crescimento. A Kiss ocupava o número 541 de uma fila de 1.036 estabelecimentos que aguardavam vistoria dos bombeiros. Qual a estratégia para que situações de risco não fiquem paradas nessa fila?

Eviltom Pereira Diaz – Uma das estratégias é redirecionar servidores, fazer forças-tarefas emergenciais. Mas isso é esporádico. Também readequar servidores, tirar de outros setores. Um exemplo é Santa Maria, onde tínhamos 14 servidores (na Seção de Prevenção a Incêndio, quando a Kiss queimou) e hoje temos 31. Tem também o uso de tecnologias, como o software (o SIG-PI). Uma mudança na lei também vai nos ajudar, que é a norma de que prédio de risco pequeno, que era inspecionado a cada dois anos, terá vistoria a cada três anos. Com isso, ganhamos um fôlego.

ZH – A estratégia de redirecionar servidores não faz com que falte em outros locais, já que o cobertor é curto?

Eviltom – É uma estratégia que não nos dá muita margem, até que recebamos os novos 400 homens (está prevista a abertura de concurso para esse número).

ZH – Com o pouco efetivo e recurso, qual sua prioridade para 2014?

Eviltom – São os prédios classificados como F6, que são boates, clubes, salões paroquiais, templos, igrejas, estabelecimentos de reunião de público, como a Kiss. Não existe estatística nacional oficial, mas temos estudos de integrantes da corporação: até o episódio da Kiss, os locais com maior número de vítimas fatais em incêndio eram, em primeiro lugar, indústria e comércio, em segundo, residenciais e em terceiro lugar, locais de reunião de público. A partir de 27 de janeiro de 2013, esses locais passaram para primeiro lugar. Então, temos dado mais atenção para esses locais.

ZH – Mais alguma estratégia de atuação para a prevenção de novas tragédias?

Eviltom – A prevenção está ganhando cada vez mais atenção. No passado, o bombeiro era só um apagador de incêndio. Hoje, nosso foco está na prevenção. Estamos dando atenção para as denúncias, todas estão sendo conferidas.

RS TEM 189 MIL PLANOS DE PREVENÇÃO À ESPERA DE ALVARÁ

ZERO HORA 27 de janeiro de 2014 | N° 17686

ADRIANA IRION*
KISS UM ANO. Estado tem 189 mil planos de prevenção à espera de alvará

Mais da metade (63%) dos 300 mil Planos de Prevenção e Proteção contra Incêndio (PPCIs) cadastrados junto ao Corpo de Bombeiros no RS aguarda certificado de segurança que deve ser emitido pela corporação



O Rio Grande do Sul tem hoje 189 mil Processos de Prevenção e Proteção contra Incêndio (PPCIs) à espera da emissão do alvará – documento que atesta que um local está adequado às normas de segurança contra fogo.

Deste total, 84 mil aguardam a visita de bombeiros para inspeção ou para uma nova inspeção no imóvel que receberá o documento. Em Porto Alegre, nos primeiros 20 dias deste ano, 350 novos PPCIs ingressaram para análise. Antes do incêndio da boate Kiss, havia 255,5 mil PPCIs cadastrados no Estado. Hoje, o total de planos é de 300 mil. Já o número de bombeiros segue sem acompanhar o aumento de pedidos.

O efetivo previsto para o Corpo de Bombeiros é de 4,4 mil servidores, o existente é de 2,7 mil e o realmente disponível é de 2 mil no Estado.

O comando dos bombeiros não soube informar quantos, destes 2 mil, atuam exclusivamente nas Seções de Prevenção a Incêndio (SPIs), que analisam os PPCIs, fazem vistorias e emitem os alvarás. Mas se todo o efetivo fizesse só o trabalho de vistorias, cuja fila é de 84 mil, cada bombeiro do Estado seria responsável por visitar 42 imóveis a fim de aprovar ou não a emissão do alvará.

Em Porto Alegre, cinco bombeiros fazem a análise do PPCI. Hoje, em função de férias e da transferência de efetivo para a Operação Golfinho, apenas dois estão trabalhando para vencer a fila de processos em busca de alvará. Para realizar inspeções nos imóveis, os bombeiros da Capital contam com 10 servidores.

Dos 189 mil PPCIs em andamento no Estado, 105 mil estão aguardando exame (de documentos) ou estão na fase de advertência, multa ou notificação, situações cuja solução depende de eventuais correções por parte dos proprietários dos imóveis.

O comandante do Corpo de Bombeiros no Estado, coronel Eviltom Pereira Diaz, considera aceitável o tamanho da fila de processos pendentes:

– É um número razoável dentro das condições que temos porque já foi maior. Em Santa Maria, por exemplo, ano passado a fila era de mais de mil e, hoje, é de 170. Conseguimos isso com uma força-tarefa que constituímos e várias ações como aumento do efetivo do pessoal da área de prevenção e mais horas extras.

Devido à pressão por adequação, o volume de processos à espera de regularização também não é considerado exorbitante pelo presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Estado (CREA-RS), Luiz Alcides Capoani. Para ele, é a qualificação do pessoal que vai analisar os PPCIs. O trabalho, defende Capoani, seria tarefa para engenheiros e arquitetos.

– O Corpo de Bombeiros deveria contratar engenheiros e arquitetos para analisar estes planos de prevenção. A lei que foi aprovada diz que o governo pode contratar engenheiros e arquitetos – diz Capoani, referindo-se à nova legislação estadual sobre planos de prevenção contra incêndio.

Investigações em Santa Maria mostraram que o alvará concedido à boate Kiss havia sido emitido com base em um plano de prevenção simplificado, inadequado para um estabelecimento de reunião de público.

O Sistema Integrado de Gestão de Prevenção de Incêndio (SIG-PI) foi apontado no inquérito da Polícia Civil como um dos responsáveis pela tragédia. Um sistema que deveria servir como ferramenta de gestão, o SIG-PI passou a ser usado de forma desvirtuada, a fim de acelerar a emissão de alvarás. Para isso, era dispensada a análise de documentos básicos dos imóveis, como plantas e memoriais descritivos.

*Colaborou Caio Cigana


EFETIVO DOS BOMBEIROS

ANTES DA TRAGÉDIA

Previsto 4.338
Existente 2.228
Disponível 1.721

HOJE
Previsto 4.480
Existente 2.730
Disponível 2.018

PPCIs E LICENÇAS

- Em 2013, os bombeiros emitiram 107 mil alvarás de Prevenção contra Incêndio.

- Atualmente, os bombeiros têm 300 mil Planos de Prevenção e Proteção contra Incêndio (PPCI) cadastrados.

- Destes, 111 mil estão com alvarás válidos.

- Dos 189 mil restantes, 84 mil estão na fila à espera de inspeção ou nova inspeção dos bombeiros e 105 mil estão aguardando exame dos bombeiros ou alguma correção por parte de proprietários.

KISS NUNCA FUNCIONOU DENTRO DA LEI



ZERO HORA 27/01/2014 | 00h22

Levantamento aponta que a Kiss nunca funcionou dentro da lei. Inquérito mostra que em 47 meses de operação, danceteria sempre operou com pendências legais


Humberto Trezzi e José Luís Costa


Que a Kiss foi uma danceteria marcada por irregularidades, o mundo não tem mais dúvidas. A novidade é qual o tamanho do manancial de problemas jurídicos e técnicos que deixou aberta uma boate-armadilha, responsável pela maior tragédia da história gaúcha.

Um grupo de policiais civis de Santa Maria decidido a montar esse quebra-cabeças trabalha há quatro meses em um novo inquérito, cuja espinha dorsal é o elenco de licenças que aquela casa noturna deveria ter e não tinha. Ou que obteve sem o devido e cuidadoso ritual burocrático.

O levantamento chegou a uma constatação: a Kiss nunca funcionou dentro da lei. Sempre, em seus 47 meses de existência, a boate teve pendente alguma licença necessária para permanecer em funcionamento.

O levantamento policial mostra que em 2009 a Kiss funcionou por seis meses sem licenças sanitária, ambiental e de localização. Em 2010, abriu por 11 meses sem licença sanitária e por quatro meses sem alvará dos bombeiros. Em 2011, foram nove meses sem licença ambiental e sete meses sem alvará dos bombeiros.

Em 2012, nove meses sem licença sanitária e quatro sem alvará dos bombeiros. Em 2013, sem alvará dos bombeiros e sem licença sanitária, até o incêndio. Os policiais civis que rastrearam a documentação afirmam: por qualquer uma dessas carências, fiscais poderiam ter exercido o poder de fechar o estabelecimento, até que a irregularidade fosse sanada.



Fiscais do município podem ser indiciados

A verdade é que a Kiss abriu, como diz o jargão popular, na cara e na coragem. Seja por desleixo ou em razão de demoras burocráticas, não tinha uma licença ou um documento sequer dos poderes públicos estadual e municipal quando foi inaugurada, em 31 de julho de 2009 – o Alvará Sanitário retroativo ao período de julho a dezembro de 2009 foi obtido somente em janeiro de 2010.

Faltavam Estudo de Impacto de Vizinhança, Laudo Técnico de Isolamento Acústico, licenças ambientais, Alvará Sanitário e Alvará de Prevenção e Proteção contra Incêndio (PPCI). Naquele ano, só providenciaria um desses documentos, o alvará de PPCI dos bombeiros, no mês seguinte ao começo da operação.

Nos primeiros meses, faltavam à danceteria três licenças da prefeitura imprescindíveis para que a casa permanecesse aberta, a sanitária, a ambiental e a de localização – essa última, a “certidão de nascimento” que atesta: o empreendimento existe e funciona.

Mesmo sem existência legal, a boate era badalada, e discussões sobre sua potência sonora eram travadas. Sem ter sequer licença para funcionamento, a Kiss exibiu um abaixo-assinado de supostos moradores da área central da cidade, que atestavam: o ruído do som não os incomodava.

Provocado pela ala da comunidade inconformada com a barulheira da nova danceteria, o Ministério Público negociou reformas acústicas com os donos da casa noturna. O promotor encarregado do caso não notou que faltavam à Kiss documentos necessários para permanecer aberta, ressalta o novo inquérito policial.

Era tanta ilegalidade que a Kiss foi multada cinco vezes em 2009, com ameaça de fechamento feita pela Secretaria de Controle e Mobilidade Urbana de Santa Maria. O embargo chegou a ser assinado pelo então secretário Sergio Renato Medeiros, mas a boate não foi fechada — a prefeitura alega que os donos tinham de fechá-la.

Os policiais civis que analisam a documentação ressaltam o que seria outra falha grave do poder público: as multas nem sequer foram pagas e não entraram para o cadastro da dívida ativa do município.

E lembram que o Código de Posturas santa-mariense (Lei Complementar nº 003/02 de 22-01-2002) é claro, em seu artigo 197: “Será fechado todo o estabelecimento que exercer atividades sem a necessária licença expedida em conformidade com o que preceitua este Código”.

Mas, afinal, por que a boate nunca foi fechada?

Questionada a respeito, a prefeitura de Santa Maria argumentou que não existia previsão jurídica para essa medida drástica, conforme sustentou a procuradora-geral do município, Anny Desconzi. Em uma das dezenas de documentos enviados à Polícia Civil, em 15 de março de 2013, a procuradora escreveu:

— Como em 2009 a boate não possuía Alvará de Localização, sequer havia o que o município cassar! Faltava o objeto para a penalidade — resumiu Anny Desconzi.

Os delegados que elaboram o novo inquérito, Sandro Meinerz e Luiza Sousa, têm uma pergunta às autoridades municipais: se não havia o que cassar, porque a boate estava sem licença, não seria o caso de simplesmente fechar a Kiss? Os policiais acreditam que sim e, por isso, pretendem indiciar fiscais da prefeitura e até secretários em alguns artigos do Código Penal relacionados à omissão no dever. A data do novo inquérito não está definida, nem o número de indiciados.

O que diz o Ministério Público Estadual (MPE)

O MPE diz que não irá se manifestar enquanto o inquérito policial não for recebido oficialmente.

O que diz a prefeitura de Santa Maria
A assessoria de imprensa ressalta que não teve acesso a dados do novo inquérito policial, mesmo tendo solicitado-os. Mesmo sem saber o conteúdo da nova investigação, reitera que todas as licenças exigidas por lei estavam presentes quando a prefeitura emitiu o Alvará de Localização da Kiss.

O que ocorre é que algumas delas tinham data de renovação muito diferente em relação às outras, mas todas foram concedidas em algum momento, antes do Alvará de Localização. A prefeitura ressalta também que o Ministério Público não encontrou indícios de improbidade ou crime envolvendo funcionários municipais.

A procuradora Anny Desconzi afirma que, antes de existir licenças, a Kiss só poderia ser embargada e não cassada – porque não tinha licença. O embargo foi determinado.

— Quem descumpriu a lei foi o proprietário do estabelecimento. Os agentes públicos municipais cumpriram a legislação vigente — diz Anny.






domingo, 26 de janeiro de 2014

CONGRESSO NÃO APROVOU NENHUM DAS 25 PROPOSTAS APRESENTADAS


Após o trauma da boate Kiss, pouca ação. De 25 propostas apresentadas no Congresso depois da tragédia, nenhuma foi aprovada

FLÁVIO ILHA

O GLOBO
Publicado: 26/01/14 - 8h00


Kellen Ferreira, no corpo as marcas da tragédia Juliano Mendes


SANTA MARIA (RS) — Traumatizado com as mortes de 242 mortes na boate Kiss, a maioria jovens em busca de diversão, o país cobrou de suas autoridades no início do ano passado mais rigor na fiscalização em casas noturnas e outros locais de aglomeração. Da noite para o dia, blitzes em série foram realizadas em boates, casas de show e de festas, para dar à opinião pública a sensação de que tragédias como a de Santa Maria (RS) não se repetiriam. No Congresso, parlamentares também foram pródigos em apresentar projetos prevendo normas rígidas e punições severas para empresários que descuidassem da segurança e só se preocupassem com o lucro.

No entanto, das 25 propostas apresentadas — 20 na Câmara e cinco no Senado — nenhuma ainda foi aprovada. E em prefeituras de capitais, como São Paulo, Curitiba e Cuiabá, a falta de pessoal, diante do desafio de uma fiscalização ampla e permanente, persiste. Na capital paulista, por exemplo, 24 fiscais deixaram a carreira desde janeiro de 2013, de um total de 550 agentes encarregados de fiscalizar também obras irregulares e o estado de conservação de calçadas. Para se ter um ideia, quando a carreira foi criada há 34 anos, a previsão era de um efetivo de 1.200 profissionais.

A partir de hoje, O GLOBO publicará, em suas editorias, uma série de reportagens que abordará o desafio que o Brasil ainda enfrenta para ter uma fiscalização eficiente que evite abusos e irregularidades em diferentes áreas.

Regras não faltam, segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). O problema é transformá-las em leis e cumpri-las com rigor, diz o diretor técnico da entidade, Eugenio De Simone:

— A ABNT não tem o poder de dizer para você o que você deve fazer. Quem tem esse poder é o governo — afirma.

Mesmo quando essas normas passam a ter valor legal, o problema passa ser criar uma estrutura eficiente que não as torne letra morta, diz um especialista em segurança, o presidente do Conselho Nacional dos Corpos de Bombeiros Militares do Brasil, coronel Lioberto Ubirajara Caetano de Souza:

— Na Região Amazônica, 90% dos municípios são subsidiados pelo governo federal, não têm condição de contratar professores. Como vão contratar bombeiros municipais? — indaga o coronel, que cobra do governo federal uma ajuda mais direta a essas localidades.

Enquanto isso, Santa Maria, cujo drama comoveu o país, não se recuperou. Só no Centro de Acolhimento Psicossocial, mantido pela prefeitura, cerca de 250 pessoas continuam em atendimento terapêutico regular, sendo que 90 precisam usar antidepressivos como parte do tratamento. É nesse clima de consternação que a Associação das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria luta pela punição dos responsáveis e leis mais rigorosas que, ao menos, diminuam o risco de novas boates Kiss.

Em Santa Maria, fiscalização patina na falta de pessoal

Um ano depois, quase nada mudou. As mortes no incêndio da boate Kiss, que completa um ano amanhã, não foram suficientes para que a cidade ainda traumatizada se preparasse adequadamente para evitar novas tragédias. A única medida concreta do prefeito Cézar Schirmer (PMDB) foi a sanção de uma lei municipal que determina aos estabelecimentos de diversão noturna a instalação de dispositivo eletrônico para contagem de público. O novo artigo do Código de Posturas do município foi sancionado em 13 de janeiro. Mesmo assim, os empreendimentos só começarão a ser cobrados pelo equipamento a partir de maio.

A estrutura de fiscalização municipal não ganhou servidores. A procuradora do município, Anny Desconzi, alega que a prefeitura não tem condições de contratar funcionários devido ao rigor da Lei de Responsabilidade Fiscal. Mesmo que pudesse, a medida não seria necessária, diz:

— Não precisamos de mais gente para fiscalizar — sintetizou a procuradora.

Segundo Anny, a prefeitura optou por investir numa reforma administrativa. Toda a fiscalização, antes distribuída por vários órgãos, agora está concentrada na Secretaria de Desenvolvimento Urbano, o que teria melhorado o desempenho do órgão.

Nova lei sancionada em 2013

Na Câmara, os vereadores estranham que nenhum projeto do Executivo propondo mais rigor no licenciamento de atividades que reúnam público tenha dado entrada em 2013. Segundo o presidente da Câmara, Werner Rempel (PPL), também não há previsão de que algo seja sugerido por Schirmer este ano. Ele discorda da avaliação da procuradora sobre a número de fiscais:

— Já fui vice-prefeito na cidade e sei que há muitas limitações legais. Mas não adianta: se não aumentar a quantidade de fiscais nenhum plano de prevenção vai funcionar. Faltou iniciativa por parte da prefeitura para propor alguma solução mais radical — avaliou.

No âmbito estadual, uma lei que promete mais rigor nos licenciamentos de casas noturnas, sancionada em dezembro pelo governador Tarso Genro (PT), dá prazo de cinco anos para que os empreendedores se regularizem no Corpo de Bombeiros, desde que não tenham sofrido modificação estrutural nos últimos meses.

A lei 14.376 foi aprovada pela Assembleia Legislativa gaúcha no final de 2013 e sancionada a toque de caixa, exatamente quando se completavam 11 meses da tragédia. Porém, não está em vigor porque, além dos cinco anos de prazo para que os prédios se adaptem às determinações, as prefeituras terão 12 meses para adequar as legislações municipais.

A lei ainda precisa ser regulamentada pelo estado, com a fixação de penas e multas para os casos de descumprimento, o que deve demorar pelo menos mais seis meses. A expectativa é que a lei comece a produzir os primeiros resultados concretos apenas em um prazo mínimo de 18 meses.

— É um avanço em termos de legislação, sem dúvida, mas não contempla nem a metade do que gostaríamos que mudasse para evitar outras tragédias. Enquanto as boates e prefeituras não se adaptarem, pode ocorrer uma nova Kiss a qualquer momento — criticou o presidente da Associação das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Adherbal Ferreira.

Exigência de brigadista

O projeto prevê que os planos de prevenção e combate a incêndios sejam renovados anualmente em casos de estabelecimentos de médio e grande risco. E obriga que eventos com mais de 200 pessoas tenham a presença de um brigadista de incêndio. Mas há inúmeras dificuldades para a aplicação da lei: uma é que todos os donos de casas noturnas e estabelecimentos que reúnam público sejam notificados sobre os prazos e orientações para o cumprimento das normas; sem isso, ninguém poderá ser punido.

O comandante do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul, Eviltom Pereira Diaz, sugere mudanças urgentes na lei para que ela seja mais eficiente a curto prazo. Ele quer que a regularização de itens como extintores de incêndio e sinalizações e saídas de emergência sejam exigidas já dos empreendimentos, sem o prazo de cinco anos. E teme que a corporação fique sobrecarregada com as atribuições de fiscalização da lei.

— Em Santa Maria, melhoramos o atendimento porque conseguimos mais do que dobrar o número de bombeiros para a área de prevenção, de 14 para 31. Mas em outras regiões do estado sofremos muito com a falta de efetivo e de equipamentos para fechar o cerco às empresas que estão fora das normas de segurança.

Kelen Ferreira, no corpo, marcas de uma tragédia

A estudante, de 20 anos, traz no corpo as marcas mais profundas da tragédia na Kiss: internada por 78 dias, 50 dos quais em coma numa UTI em Porto Alegre, a garota carrega cicatrizes profundas nos dois braços, que provocam coceira e a obrigam a usar protetor solar de duas em duas horas, a cada vez que sai de casa. Além disso, precisou colocar uma prótese na perna direita para compensar a perda provocada pela operação de resgate que salvou sua vida.

— A sandália que estava usando naquela noite trançou em alguma coisa e estrangulou meu tornozelo, enquanto me puxavam para fora. Como afetou a circulação, a saída foi amputar a perna do joelho para baixo. Acordei do coma muito diferente do que eu era antes de entrar na boate — lamenta a estudante, que ainda tem dificuldade para falar e ficou com a voz rouca devido à fumaça venenosa.

Kelen obteve auxílio-doença do INSS de um salário mínimo (R$ 724,00) que a ajuda com os tratamentos. Ela faz terapia ocupacional no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). Reaprende a andar na esteira e já realizou “dois ou três” enxertos de pele, como forma de amenizar as sequelas da tragédia. Mas sabe que não terá a vida plenamente de volta e, por isso, não quer se submeter a procedimentos estéticos e deixar de ser “a porta-voz mais contundente” do crime cometido em Santa Maria.

—Só vou sossegar no dia em que todos os responsáveis forem punidos – garante Kelen.

Marta Beuren, contra o trauma, a solidariedade

Marta, de 63 anos , achou um jeito diferente de superar a perda do filho caçula no incêndio da Kiss: passou a ajudar outras mães.

— Quando passou o torpor inicial, a fase da negação, percebi que eu era uma privilegiada porque ainda tinha três filhos em casa. Outros lares foram totalmente desestruturados, outras mães perderam tudo o que tinham — diz a dona de casa.

O auxílio se materializou em forma de cestas básicas. Como muitas mães perderam o sustento da casa na tragédia, passaram a encontrar dificuldades para resolver questões como comprar comida. Marta ajudou a criar, em junho , o grupo Mães de Janeiro, que recolhe alimentos para doação.

Mensalmente, são 25 cestas básicas distribuídas para mães que perderam os filhos ou os maridos na boate, e que não têm mais como se sustentar:

— Faço isso como uma homenagem ao meu filho. E também para mostrar a injustiça cometida contra as famílias das vítimas. O drama de todos é o mesmo, não importa a condição social de cada um.

Gelson Silva, coveiro precisou buscar ajuda

Responsável pelo setor operacional dos cemitérios de Santa Maria, Gelson Altemir Silva, de 49 anos, tem um pesadelo recorrente desde que participou dos sepultamentos de 200 das 242 vítimas do incêndio na boate Kiss: o de que está fazendo seu próprio enterro. Gelson estava de folga naquele domingo quando o telefone começou a tocar, às 7h. E não parou mais, até o dia seguinte.

— Primeiro, falaram em cem mortos, depois foi subindo: 120, 140, 200. Fizemos tudo muito rápido, para diminuir o sofrimento das famílias. Depois que acabou, desabei e não levantei mais. Não tem dia que não me lembre da quantidade de corpos pelo chão — diz o funcionário da prefeitura.

Ele passou dias e noites sem comer e dormir. Conta que muitas bobagens lhe passaram pela cabeça, até que em abril, dois meses após a tragédia, procurou ajuda psicológica.

Gelson ficou internado três dias devido à depressão e passou a tomar remédios e a se consultar com um psiquiatra:

— Todos os meus colegas de trabalho mudaram para pior depois da tragédia. Temos pavor de que aconteça de novo.

O QUE FICOU EM NÓS






















ZERO HORA 26 de janeiro de 2014 | N° 17685


EDITORIAL



A dor dos familiares e amigos das vítimas ainda não arrefeceu – e talvez nunca venha a diminuir. A sensação de impunidade ainda martela nossos corações e mentes, pois todos os apontados e indiciados pela investigação policial permanecem livres. A irresponsabilidade, a inoperância, o desleixo, a ganância e tantos outros fatores que geraram a maior tragédia da história do Estado ainda se mantêm latentes em muitas instituições públicas e organizações privadas. A burocracia e a leniência continuam igualmente entravando alterações urgentes e necessárias na legislação preventiva.

Porém, um ano depois do infortúnio que comoveu o país e marcou Santa Maria para sempre, pode-se dizer que houve, sim, uma importante mudança na vida de gaúchos e brasileiros. Apesar de quase imperceptível, seu significado é imenso. As pessoas tornaram-se mais conscientes em relação à própria segurança, especialmente quando frequentam locais fechados e de grande afluência de público. Parece pouco, mas esta transformação interna e individual pode ser o embrião da cultura de responsabilidade que o país precisa desenvolver para nunca mais ter que viver um luto semelhante.

A Kiss que ficou gravada na alma de cada brasileiro grita a todo momento que somos também responsáveis pela nossa segurança, dos nossos filhos e amigos e pela fiscalização permanente daqueles que escolhemos para nos representar nos governos e nos serviços públicos. A Kiss de fogo e fumaça, que ainda assombra os sonhos dos jovens e tira o sono dos pais, também nos mantém em alerta permanente contra as armadilhas da negligência, contra os relapsos, contra exploradores da boa-fé, contra gananciosos de todos os calibres e nenhum escrúpulo. A Kiss das piores lembranças não nos deixa esquecer que a juventude precisa ser protegida, amada e celebrada como a mais preciosa das dádivas.

Um ano, todos sabemos, não é tempo suficiente para curar feridas que jamais cicatrizarão. Mas permite uma reflexão mais serena e distanciada sobre as causas, as razões e os ensinamentos do episódio. E algum significado maior tem que ser tirado daquele martírio coletivo. As famílias dos meninos e das meninas que partiram sem aviso na noite de festa vêm nos ensinando todos os dias, com inaudita coragem, que a vida sempre faz sentido quando a alma não esmorece. Pais, mães, avós, irmãos e namorados mostram a cada momento, com suas mensagens amorosas e cheias de saudade, com suas iniciativas sociais e com a pressão civilizada por justiça, que o ser humano se engrandece e se fortalece quando respeita seus semelhantes e honra seus afetos. Os sobreviventes da tragédia também dão lições de força e destemor ao retomar os movimentos da vida. Neles devemos nos espelhar para podermos efetivamente construir um futuro melhor, mais seguro e mais digno para todos.

JORNALISMO, MEMÓRIA, COMPROMISSO

ZERO HORA 26 de janeiro de 2014 | N° 17685


CARTA DO EDITOR | NILSON VARGAS





No dia 28 de dezembro, quando eu chegava a Santa Maria numa entre muitas viagens para rever familiares, rádios anunciavam, um a um, os nomes dos aprovados na UFSM. Já descrevi em Zero Hora, em artigo publicado logo após a tragédia da Kiss, o ritual em que a cidade confere pelo rádio a lista dos “bixos” da Federal, uma conquista para os jovens e uma honra para as famílias.

Ao ouvir o listão, pensei nos pais e mães que perderam filhos na Kiss. Muitos dos 242 mortos eram universitários, formandos, vestibulandos, uma gurizada que teve a vida interrompida num enredo de horror. É um movimento circular para quem tem ligação com a cidade: em algum momento, por algum motivo, em alguma esquina, a tragédia vem à memória. Esquecer não depende só da vontade.

No instante seguinte, pensei no trabalho que uma equipe de jornalistas de ZH já começara a fazer e que está publicado nesta edição e em zerohora.com. Boa parte dessa equipe aparece na foto acima. Refleti sobre a complexidade de voltar a tocar num tema tão sensível, sobre a necessidade de manter – como temos procurado fazer desde o trágico 27 de janeiro de 2013 – o máximo respeito pela dor de tantas pessoas, sobre a missão confiada à imprensa naquele episódio repleto de cenas tristes.

Jornalistas precisam investigar. Não somos policiais, donos da verdade, justiceiros. Cruzamos dados, ouvimos pessoas, mergulhamos em histórias, revelamos, duvidamos. Nem sempre isso é simpático, muitas vezes requer uma insistência que incomoda, faz-nos um tanto obsessivos. Mas é nosso compromisso com o público.

Jornalistas são, também, zeladores da memória de uma comunidade, de uma época. Com seus escritos, imagens e falas, cuidam de uma espécie de rascunho, depois lapidado e perenizado por historiadores e outros especialistas. Um rascunho com o máximo de precisão para dar suporte a quem acessa nossos conteúdos hoje ou daqui a décadas.

É destas missões que se ocuparam por muitas semanas os colegas da foto. Não foi simples, em diversos momentos foi doloroso. Eu e muitos dos rostos compenetrados da imagem voltamos a nos emocionar e a chorar com as histórias, a saudade, a dor, a resiliência, a capacidade de superação de tantas pessoas. No papel, a reportagem das páginas 23 a 46 ganhou estilo de um livro, dividida em capítulos, com texto denso. Um formato que ajuda a reforçar o sentido documental do que produzimos. Um ano depois, revisitamos a tragédia da Kiss para recordar fatos e personagens, adicionar novas informações e reforçar um compromisso resumido em duas palavras: não esquecemos. Ainda há o que contar, o que investigar, ainda há um vazio na apuração de responsabilidades pela tragédia. Por isso, não esquecemos.

PARA NUNCA MAIS


ZERO HORA 26 de janeiro de 2014 | N° 17685

ARTIGOS

por Marcos Rolim*




As tragédias, para além da dor que disseminam e do que há de impensável nelas, costumam produzir impactos políticos e culturais profundos. Diante dos efeitos avassaladores da morte gratuita em grande escala, a forma como as sociedades se organizam e, mesmo, os padrões com os quais elas se concebem tendem a se alterar. O terremoto de Lisboa, de 1755, seguido por um tsunami e por centenas de incêndios, fez com que a filosofia fosse outra. Até então, as tragédias eram imaginadas como castigos divinos. O dia 1º de novembro, quando Lisboa foi destruída e dezenas de milhares de pessoas soterradas, era um feriado religioso em Portugal e as igrejas estavam lotadas de fiéis. Por que Deus os castigaria e por que os que estavam afastados das igrejas e de outros prédios teriam sido poupados?

Questionamentos do tipo permitiram que Voltaire refutasse a teodiceia de Leibniz e que o Marquês do Pombal começasse a investigação específica sobre o fenômeno, pioneirismo que abriria espaço para uma nova ciência, a sismologia. Tendo presente a realidade construída pela ação humana, foi com o Holocausto que a humanidade teve contato com o mal radical e com crimes cometidos por pessoas “normais” que obedeceram, porque desacostumadas ao pensamento. O ideal de um governo mundial, desde então, passou a ser um desafio político; surgiram as Nações Unidas, os Direitos Humanos emergiram como um paradigma ético secular, a realidade miserável do antissemitismo e a história dos pogroms passaram a receber o merecido repúdio e, assim, sucessivamente.

Um ano após a tragédia de Santa Maria, a pergunta incômoda – e, portanto, aquela que deve ser feita em primeiro lugar – é: o que mudou no Brasil? No RS, a mudança mais sensível e que deverá produzir efeitos importantes é a nova legislação (Lei 14.376/2013) de segurança, prevenção e proteção contra incêndios, de autoria do deputado Adão Villaverde (PT), que contou com ativa colaboração da sociedade civil e de especialistas. Tudo parece indicar, entretanto, a necessidade de reformas mais amplas, a começar pela sempre adiada autonomia do Corpo de Bombeiros, instituição central em qualquer política pública na área. Atualmente, apenas 18% dos municípios do RS têm bombeiros, o que significa que mais de 400 cidades gaúchas estão desprotegidas. Tal carência – que poderá inviabilizar a aplicação da nova legislação – exige a formação de serviços mistos, coordenados por bombeiros profissionais, com poder de polícia, e com voluntários. Tramita na AL/RS a PEC 229, apresentada pelo deputado Pedro Pereira (PSDB), uma proposição que renova o conteúdo da PEC 45, que eu havia apresentado há quase 20 anos, em favor da autonomia dos Bombeiros. De lá para cá, mudaram os governos, o mundo mudou, mas o corporativismo, o cinismo e a ausência de vocação para as reformas seguem se impondo entre nós. Infelizmente, um ano após a tragédia da Kiss, ainda não podemos dizer: “Nunca mais”.

*JORNALISTA

CASTELOS DE CARTAS


ZERO HORA 26 de janeiro de 2014 | N° 17685

ARTIGOS

por Percival Puggina*




“Qualquer idiota com mãos firmes e um par de pulmões funcionando pode construir um castelo de cartas e depois soprar para derrubá-lo.”

O que aconteceu na boate Kiss teve muito a ver com as afirmações dessa frase de Stephen King. Aquele local de lazer era um castelo de cartas à espera do sopro fatal.

Muitos brasileiros que emigram para o assim dito Primeiro Mundo passam por um período de adaptação. Para uns, é rápido. Para outros, porém, é um tempo de frustração que se encerra com a decisão de retornar às origens. Na essência da adaptação ao cotidiano dos países mais bem organizados, marcando-a de modo decisivo, está a absorção da seguinte regra geral de convivência: as leis valem para todos e não são inconsequentemente desrespeitadas. Isso costuma ser um choque. A ordem que produz costuma ser vista como enfadonha. Para muitos de nós, o respeito às leis, às regras de condomínio, aos preceitos de um contrato, aos costumes locais, cria uma atmosfera irrespirável.

No entanto, o Primeiro Mundo é o que é, em grande parte, por causa disso. Em virtude de tão fundamental norma, alguns países europeus estão fechando presídios. Há cada vez menos pessoas dispostas a aceitar os riscos inerentes à tentativa de prosperar no mundo agindo no submundo. Em virtude dessa regra, certos imigrantes preferem retornar à zorra nacional, aqui onde as leis são feitas para luzirem no papel e não para, de fato, sinalizarem as condutas.

No Brasil, o costumeiro desrespeito às leis, regras e costumes vai construindo castelos de carta em toda parte. Há castelos institucionais que vemos ser soprados pela falta de racionalidade, desde dentro e desde fora, comprometendo o funcionamento da República. Há castelos de carta estatísticos e contábeis, feitos para iludir, construídos por governos prestidigitadores. Há castelos de carta empresariais, concebidos para encher o peito de vaidades, de dinheiro os bolsos de alguns, e de problemas a vida de muitos. Há castelos de carta em políticas públicas, ineficientes ante a realidade para a qual foram concebidas. E há castelos de carta como a boate Kiss, à espera do sopro quente da morte, à espera da ignição lançada ao ar na madrugada de 27 de janeiro de 2013.

Irving D. Yalom, no livro O Dia em que Nietzsche Chorou, afirma que se subirmos suficientemente alto chegaremos a um nível a partir do qual as tragédias deixam de parecer trágicas. Ele estava errado. Não há nível a partir do qual deixe de ser pungente o diuturno sacrifício humano nas estradas e ruas do país, nos becos das drogas, nos presídios que o Estado já delegou ao comando dos próprios reclusos, nas filas de espera do SUS, na indigente atenção à saúde pública, no mau agouro enfermiço da falta de saneamento básico. Não há altura nem distância a partir das quais o incêndio da boate Kiss deixe de nos queimar a todos. Ele é uma consequência doída, ardida na alma, de uma outra tragédia, que quase não vemos: nosso hábito de dar um jeitinho e driblar a lei. Até que o país nos caia na cabeça.*ESCRITOR

O PRAZO DO LUTO


ZERO HORA 26 de janeiro de 2014 | N° 17685

ARTIGO


por Diana Lichtenstein Corso*




Abandonamos quase todos os rituais. Hoje eles são uma caricatura do que foram em um passado recente. Se vivêssemos décadas atrás, agora, no aniversário de um ano das mortes da boate Kiss, estaríamos levantando o luto, o período previsto para sofrer estaria cumprido. Voltaríamos a usar roupas normais e estaríamos liberados para as alegrias da vida. Podemos objetar, e com toda razão, que um prazo assim é arbitrário, um luto dura enquanto dura, é um tempo subjetivo, pessoal. Cada um sabe quanto precisa para juntar seus cacos e seguir em frente, qual é a hora de dar-se conta de que há outros que contam com sua presença. Talvez fosse mais fácil fazer um luto quando ele era tabelado, cercado de prescrições que só nos cabia seguir. Mas os tempos de hoje são de uma maior solidão para esse processo, não existem parâmetros, cada um tem que inventar sua maneira de lidar com a dor.

Enquanto vivemos possuídos pelos efeitos da perda, nossos mortos sobrevivem nos sentidos: são vistos e escutados. Aliás, não é à toa que na ficção há tantas casas assombradas: é na intimidade que as lembranças ganham corpo, as casas são os cemitérios preferidos dos nossos sentimentos. Juramos ter visto uma sombra, que se favorece dos jogos de luz, os ouvidos detectam os passos, a chave na porta, o quarto vazio guarda ecos de ruídos ausentes. A imagem preservada pelo amor substitui o corpo que fomos obrigados a nunca mais ver.

Com o tempo, os fantasmas se transformam em lembranças. Estas têm uma característica inquietante, que é sua aparente arbitrariedade, pois nunca temos certeza de que elas são verídicas. Sua natureza é contrária à realidade, só existem porque algo deixou de existir. Lutamos contra essa transformação com todas as forças, agarramo-nos aos fantasmas, única presença possível de alguém que se tornou ausência. O maior apoio dessas aparições são seus objetos, seus cômodos se tornam mausoléu onde celebrar a perda irreparável. O que ontem era deixar de usar as vestes negras, sinal de um luto oficialmente encerrado, hoje passa a ser o momento de desfazer-se de objetos, roupas, ninharias, de reconhecer que já não há sequer um fantasma que reclama um lugar para morar.

Nesse processo de abrir mão dos restos materiais daqueles que perdemos, há algo que reencontramos: voltamos a notar a presença daqueles que restam vivos ao nosso redor. São pais, irmãos, filhos, netos, sobrinhos, maridos, esposas e amigos que precisam sentir-se importantes, fazer diferença. Entregues à dor, demonstramos que só nos importava aquele que partiu. Infelizmente, no sofrimento somos egoístas, negando qualquer valor aos outros vínculos que não foram perdidos. Por amor aos que não morreram é preciso deixar o morto tornar-se lembrança, tirar da alma os trajes negros, resignar-se a viver.

Um certo exagero da mídia em falar do assunto é também uma resposta coletiva para ajudar em problemas individuais. Como já não temos regras do que vestir, como portar-se, como sofrer, o compartilhamento social ajuda a cada um dos familiares e amigos. Acaba sendo uma forma nova para um problema velho, uma ajuda para seguir em frente depois de enterrar pessoas amadas.


*PSICANALISTA DIANAMCORSO@GMAIL.COM






O PRANTO E O CRIME


ZERO HORA 26 de janeiro de 2014 | N° 17685

ARTIGO

por Flávio Tavares*




A tragédia de Santa Maria foi tão ampla e profunda, tão insólita e absurda, que ainda não terminou. Um ano depois, tudo nela se multiplica, como se o horror fosse algo corriqueiro a imitar, não uma carnificina a punir. Naquele domingo de 2013, primeiro foi o espanto: mais de 200 corpos inertes, um ao lado do outro, num quadro que nem sequer a ficção sádica de um filme de terror ousaria inventar e que, no entanto, era verdade. Passado o espanto, veio a dor e veio o pranto. Choramos todos! Com as lágrimas nos solidarizamos com as vítimas, mostrando que naquela brutalidade não havia dor alheia, pois a dor estava também dentro de nós.

A presidente Dilma interrompeu sua visita ao Chile e voou diretamente a Santa Maria para certificar-se da tragédia. O mundo inteiro espantou-se! Mas e daí?

Um ano depois, a dor se multiplica. Agora, com amor e respeito choramos pelos 242 mortos. Mas choramos, também, de raiva e impotência: não há responsáveis pelo crime. Ninguém assume sequer uma nesga de participação em nada, como se os únicos envolvidos na tragédia fossem as próprias vítimas. Todos se dizem alheios a tudo. Dos donos da boate (que armaram a ratoeira sem saídas) aos fogueteiros da banda, do prefeito de Santa Maria aos fiscais e bombeiros (que legalizaram o absurdo), ninguém assume sua parte no desastre que virou crime.

Essa mesquinhez absurda é degradante. Por que nossas instituições são insensíveis ao delito? Onde está a responsabilidade empresarial? Por que cortejar a impunidade, como se tudo fosse permitido ao crime?

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Nesta tragédia, tudo é espantoso. Já lembrei aqui que nem na Guerra dos Farrapos, nem na Revolução de 1893 (em que cada lado saía para matar e festejava a matança), houve 242 mortos de uma só vez. Espanta, também, o desdém a que foi relegada a minuciosa investigação dos delegados de polícia Marcelo Arigony e Sandro Meinerz. Milhares de páginas com centenas de laudos periciais, testemunhos e interrogatórios foram tratadas pelo Ministério Público como se retratassem uma rixa entre vizinhos. Terá sido a partir daí que se abriu caminho à impunidade?

Será que as formalidades processuais pesaram mais do que a realidade, como se a lei não devesse interpretar a vida e não existisse para coibir a multiplicação da maldade? Terá sido esta a via pela qual se guiou o poder judicial, quando optou pela situação atual, em que os responsáveis diretos e indiretos desfrutam de plena liberdade?

Livres, os implicados na tragédia comportam-se como se fossem vítimas da ânsia de justiça. Sem qualquer gesto de arrependimento ou humildade, tentam eximir-se pela arrogância, transmitindo às cinzas a responsabilidade de tudo.

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Santa Maria transformou o luto em luta e resiste. Fora disto, porém, o crime impune serviu de guia à corrupção: na prefeitura de Porto Alegre passaram a “vender” licenças de funcionamento a casas noturnas, com base na experiência das fraudes de Santa Maria. Foi a única consequência direta da tragédia...

Em 2013, no dia seguinte ao incêndio, escrevi neste jornal:

“Consumada a tragédia, além do pranto e da solidariedade, o caminho árduo, agora, é chegar aos assassinos diretos e indiretos (...) pois os culpados transformam-se em autores de um homicídio coletivo. (...) A tragédia exige pensar a fundo e indagar sobre o hedonismo da sociedade de consumo, que transforma tudo em mercadoria de venda fácil. Até a vida de duas centenas de jovens que buscavam divertir-se. Esta tragédia não é apenas dramática e brutal, é revoltante!”.

Hoje, um ano depois, indago: quando veremos a justiça substituir a revolta?


*JORNALISTA E ESCRITOR